terça-feira, janeiro 9

Minha janela para o mundo



Poema e insônia,

Este par que vez em sempre

Resolve marcar um encontro

Em meu corpo.



Despido, nu, e ainda não se viu

Embora com quase quarenta.

De novo neste degredo

Que busco para me encontrar

Em busca da criança que quero deixar-me ser.

Chamo Adélia, a Prado

E imploro que ela me ensine a soltar meus cães;

Mas não há cachorros, nem nada tão grande,

Há sapos, salamandras,

Anfíbios, plenos para água,

E inteiros para a terra.

Desejo as asas,

Mas as asas, quem me empresta

É a poesia.

É Vinícius quem as têm.

Que como ninguém,

Soube ser criança

Na medida em que crescia;

Quero poesia,

Poesia que acalanta

Que me traz de volta ao corpo

Este que nem me cabe,

Mas de novo me traz

Simplesmente por reverberar,

Estremecer o espírito.

E o verbo se faz carne.

Quero poesia,

É nela que deserto o haver

O haver que me nina

O haver que me encoraja;

O haver e o simplesmente ser.

(Márcia, insone...)

O haver


Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura

Essa intimidade perfeita com o silêncio

Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo

– Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo

Essa mão que tateia antes de ter, esse medo

De ferir tocando, essa forte mão de homem

Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos

Essa inércia cada vez maior diante do Infinito

Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível

Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento

Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade

Do tempo, essa lenta decomposição poética

Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio

Numa catedral em ruínas, essa tristeza

Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria

Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história...

Resta essa vontade de chorar diante da beleza

Essa cólera em face da injustiça e do mal-entendido

Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa

Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado

De pequenos absurdos, essa capacidade

De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil

E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza

De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser

E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa

Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar

De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade

De aceitá-la tal como é, e essa visão

Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior

De mundos inexistentes, e esse heroísmo

Estático, e essa pequenina luz indecifrável

A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos

De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória

Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade

De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade

Pelo momento a vir, quando, apressada

Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante

Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto

Esse eterno levantar-se depois de cada queda

Essa busca de equilíbrio no fio da navalha

Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo

Infantil de ter pequenas coragens.


in "Poesia completa e prosa: "Poesias coligidas", Vinícius de Moraes

Márcia, com saudades do que eu ainda não vivi.



Nenhum comentário: